sexta-feira, 27 de junho de 2008

Rua Deserta


Um vazio urgente
imponderável
Em véspera de solidão
Veio viver naquela rua

E pelos corredores dos relógios
Emerge um tempo
Que se agiganta
esmaga a memória dos passos
E gota a gota
Apaga perfumes
E presenças.

Transversalmente
As outras ruas
Paralelas
Ao acaso
Vidas dispostas
Em ângulos rectos
Diametralmente opostas
Ao senso comum
E em espiral ascensão de morte

As ruas mais próximas são gargantas escuras
Sem voz
Matizadas aqui e ali pelo sol fugidio das tardes claras
De primavera
Onde as crianças já não brincam com carrinhos de tracção.

De tempo a tempos ouvem-se passos de um andar apressado
Na calçada de pedras luzidias
Que se afastam
Deixando que o deserto pese nas esquinas
Enquanto as folhas da amoreira são abanadas
pelo vento do silêncio.

Ao mesmo tempo
terrivel
Ao mesmo tempo
Indiferente

Eme


[Imagem de João Parassu]

É este o momento


Mas há um momento em que vês
essa razão.
Esse labirinto de habitar o efémero
o acolher do adeus
o minuto de jogar
instante em que perdes e ganhas

Quando dizes ao peito
o regresso do vazio
Um vazio frio
liquido
volátil
impresso a cubos de gelo
no sangue.

Como se o corpo tivesse essa fragilidade
perfeita
e contudo tão imperfeita
sujeita às leis
dos sete elementos
nesse flagelo doce
da espera,
do jogo e da dança
e no engolir pleno
da descoberta.

Assim como
Tu não o merecesses
O Amor
e os frutos sumarentos
na ponta da língua.
Nem
no contorno redondo
do encontro
nem o recomeço da angústia
na certeza da maré incerta.
ou
como se o amor
nao criasse raízes na terra
quando chove ao fim da tarde.

E é precisamente nesse silêncio de contenção
Que sentes que estás
vagarosamente
a cair
da torre mais alta da tua cidade.

Eme


[Imagem de Alicina Mil-Homens]

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Fuga


Este gosto de sangue.
Doce
Este grito insano.
Do corpo.

Uma ferida acesa
Em carne viva
Uma aranha que passeia pela cama.
Indolente.
No engano do frio
A verdura das manhãs claras
do pensamento que volta
do nada que não foi.
Do tudo que esta lá ainda.

Talvez uma Fuga
Em àgua doce
invente uma cor nova para o céu
o azul escuro da memória dos sentidos
ou vermelho sangue da ferida.

A ferida
De novo a ferida
No rasgar indelével das algemas nos pulsos.

Fecho e olhos
E espero.

A bala
ou a pétala.


Eme

Portas



Vejo-me em sonhos breves
E guardo para ti o meu despertar
De imagens pueris
Onde uma porta entreaberta
Te espera

As manhas impossíveis
Que nascem nos copos vazios
A saudade acordada
do que está por vir.

As saudades do que as portas escondem
Assim
meio fechadas
meio abertas.
As saudades do piso aveludado de musgo
na
a espera dos barcos
no fundear de todas as ancoras perdidas
dos mares não encontrados.

Até que todas as portas encontrem a saída.

Não te enganes:
Na claridade da manhã
Invento-te
E reinvento-te.
Para te dizer
Das portas que fechamos atrás de nós.

Mas não quero dormir para acordar por tão pouco.
Melhor será persistir no sonho
E não acordar subitamente.

Porta a Porta
procuro do lado de lá
o calor que guardei do teu colo.

Eme


Ter-te



Por falar em Música:
Eu nunca deixei de te ter
Tu nunca deixaste de me ter
Sem restrições.
De todas as vezes que te tive
A ti.
À música.

No roçar dos dentes
rompiam-se as comportas do mundo
naquele infinito
de tudo
com acordes de mãos vazias
do nada.


Quando choraste
No eco feliz dos momentos sem peso
No tempo

que parou os segredos
que as línguas diziam.
Juntas.

E o Mundo
(diziamos nós):
Acabava ali.
Mesmo na ponta da cama
Mesmo na ponta da faca
A um canto
na esquina da casa
na sombra esbatida dos ruídos
nas bocas
no rumor secreto
do meu
do teu pecado.


ou
simplesmente
um
beijo

Eme



(Imagem: " O Beijo" - pintura de Élia Laranja)

sábado, 21 de junho de 2008

Ballet for Life - I was born to love you -

I was born to love you
With every single beat of my heart
Yes, I was born to take care of you
Every single day of my life

Queen

Maurice Bejart, Ballet, Lausanne

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Olívia


para fazer festas às palavras.

Algumas chegam entre mãos
na carícia breve da madrugada.

Enquanto não parto para ítaca,
viajo, aguardo circe
que me transforme em felino agudo.
depois é só encostar-me às pernas
e fitar-me
eu, nariz aquilino, olhos rasgados em mim
na verticalidade da íris; lamber os pelos, a pele,
arquear o corpo na languidez do gesto.

Ficar à espera que a palavra cresça."


Poema de Jose Félix


[Para ti Olívia de quem tenho uma saudade imensa]

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Sede


Pudesse eu beber-te os olhos
E a sede teimava-me na garganta.

Em dias de Estio dourado
Quando a frescura do teu olhar
Escorre a gotas no meu peito
e eu sonho o oásis aqui perto
tão perto, que basta estender a mão
fazer concha
e beber-te.
Devagar.

Ou quando o verde límpido e claro dos teus olhos
qual prolongamento do mar
Atravessa as pontes
Rasga o nevoeiro das ausências
E as saudades da pele
Ou os dias contados um a um
Ou quando preparas nos gestos matinais
A surpresa de logo.

É desse verde que falo
Desse verde que se espraia devagar
Que abre em mim desejos de tempestade
Quando sorris
Quando me olhas
E eu já não sei bem, se cheguei
Se fui,
Ou se ceguei, naquele instante.

Mas fico ali

naquele espaço etéreo
Entre a vida e a não vida.
Como quando te tenho
Dócil e viril
Como quando te prendo
Entre as minhas pernas
Frágil
Latejante
Ingénuo e ébrio.

Como quando te bebo e a minha sede aumenta, em cada gole de ti.


Eme

Palavras


As palavras.
Pergunto: será que as ouvimos?
Quando as dizemos?
Ou quando as escrevemos?

Nunca embrulhámos as palavras em papel de seda plissado.
Só as dizemos.

As palavras.
Palavras com som de ida
Palavras com nuances de volta
Palavras de veias
De facas
De filhos
De noites.

Mas palavras são só isso.
Palavras.
Basta entornarmos o som
E as palavras ganham asas
Voam
Já não pousam mais na tua frente
Desaparecem no infinito
Constroem casas
Idílios
Suicídios
Romances.

Desenham mais sons
De espanto
Sons de inverso
Sons de versos
Mais palavras
A dizerem esmola
a dizerem da loucura de bocas unidas
Ou de cortinas corridas.

Mas são só isso: palavras.
Que dizemos.

Sentir ?
As palavras ?
O contrario do contrário:
Ás vezes sentimos muito menos
Ás vezes sentimos muito mais.

Eme

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Amy Winehouse

He can only hold her for so long
The lights are on but noone's home
She is so vacant
Her soul is taken
He thinks 'what's she running from'

Now how can he have her heart
When it got stole

Perdida


Quando avanço para dentro de mim
Perco-me
Não sei quem sou.

Chamo-me riso
Para o negar de seguida
Enquanto choro baixinho.

Mas fico ali
Sempre ali
Entre a morte e o cansaço.

Sinto-me uma mistura
de sono de lua cheia
de alma triste
de parede caiada de branco
de felina com cio
ou de frasco de veneno
em bicos de pés

Nem sei como cheguei aqui
Sei que sou uma marca da minha marca
marca de vento
e de espiral
Marcada pelo ferro do silêncio
Pelas laminas da tempo
E do desencanto.

Ou então por nada
Porque eu sempre te digo
Marca-me!

Achaste-me.
Para me ensinares a perder-me.

Eme

quinta-feira, 5 de junho de 2008

7 horas


As 7?

Estou deitada
E espero-te
Penso-te
Penso-nos

Não custa esperar pelas 7 horas
O que dói é o tempo
Entre as 7 horas e a tua chegada.

No meu peito aberto em pétalas
Nascem gestos
Quer me ardem nas mãos

Imagino-te
Viajo no teu corpo
Num arrepio liquido
De sentidos
Numa descida
Morna
De espera

O teu umbigo
Cálice fresco de morangos em calda
Que mordo
entre lábios de passagem

Quero-te
Ávido de mim
ávido desta chama que me
acendes
ateias
apagas.
E reacendes

Caio no teu abraço
E já não sei a que horas vieste.

Eme

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Espelho Meu

Um dia (noite) disseste-me depois de uma acalorada discussão filosófica:
Sou um sujeito imprevísivel, um dia posso dar-te um tiro na cabeça
Pensamento retórico (pensei eu).
Mas não era.
Hoje quande me olhei no espelho, entendi.
Agora é oficial.
Não me deste um tiro na cabeça, deste-me um tiro no peito.

Eme

Amanhã


Estás de costas para o mar.
Um vento denso
Cortado a cinzento escuro
Anuncia temporal.
Esta neblina submersa
Este frio cortante
De querer ficar
De querer ir embora.

Apetece este sofrimento imenso
Apetece o medo das ondas
que se levantam
em ritual pagão
apetece este canto de sereia
dorido.
Apetece esta chuva sem águias
Sem céu.

Aqui sou tantas:
Sou felicidade absoluta
sou requebro de tango
Sou grito doentio
Sou mentira imposta
Sou verdade incerta
Sou a indiferença da pedra molhada.

Sou a outra parte
Da parte que me viraste do avesso.

Sou o caminho de ir
De ficar semente e voar
Neste silencio cúmplice.
Quando te emerges do impossível
Qual rio descontrolado
Sem margens
Sem rumo
E vazas em mim.

Em mim que sou indigna desta chuva que cai.


Eme

terça-feira, 3 de junho de 2008

Cheiros

Gosto de cheiros.
De glícinas em cacho
cadentes
Aquele cheiro lilás de calor e quintal com cores.

De café com leite
A fumegar.

Gosto do cheiro da terra
húmida
quando o arco-irís se desenha lá em cima.

Gosto do cheiro
da intensidade
De um olhar verde-água
Num dedilhar de viola.

Gosto do cheiro a ânsia
De lume.
Gosto daquele cheiro que tem um não sei quê
de queda.
Um não sei quê de céu
Ou de mar em chamas.
Quando a ponta dos dedos
sussuram indecências
na pele.

quando a claridade se escapa das mãos
e brinca de olhos fechados
entornando os silêncios
os perfumes
e as vontades.

Gosto do meu cheiro
Quente
Aquele cheiro vermelho
Quando a tua figura se desenha no umbral da minha porta
E me visto de lua.
Aquele cheiro de fêmea louca
quando nasço
sucumbo
desfaleço
e
renasço.


Eme

domingo, 1 de junho de 2008

Caixa de Jóias

Lembro-me de um dia
em que disseste que querias tatuar uma letra do meu nome
Outra do teu.
Daquele ano que não acabou
E que continua no dobrar dos dias
No chão que piso quando acordo.

Ou fui eu que disse?
Não sei
Mas lembro-me desse dia

Foi quando te disse que dissemos tudo
Pisando as pétalas
Sublinhando a branco luz as duas letras

A minha.
E a tua.

Confundido o céu com as poças de água.
Naquela abraço quente
longo
De último verso de poema
Foi quando te disse
Que era o frio das tuas mãos nas minhas
Que lavava o pó do meu caminho.
E não ouviste.

As duas letras ainda lá estão
Tatuadas no peito
fechadas na caixa de jóias.
Misturadas com ouro de lei.

Para serem soletradas
Quando te lembrares
Em que lugar nós a escondemos.
Dos outros.


Eme