quarta-feira, 29 de outubro de 2008


acordas dos dias de branco
quando te desenhas aqui
de frente para mim

olho-te com sons quentes
a óleo
e os silêncios desprendem-se soltos
na humidade dos dedos
em toques tangentes de fúria
e desejo

devagar

afogo mistérios em esperas rasgadas
nos gestos escancarados de gatos
um cio de água fria
gemidos de garras
num desejo ávido de penumbra

condenso-me no teu abraço
enquanto me afundo no teu verso de mel
aguado
latente
nesse tango vadio
com que desabotoas a minha noite
de amores
e de desamores

é a imensidão do verde do teu olhar
que me inflama as horas
e a garganta
no deleite dos sussurros roucos
indecentes
presa numa confusão de ancas
de artérias
de asas

quando me deixas ébria
sem saber se fujo daqui
ou se te peço mais
mais
e mais

Eme


Imagem: "Contemplação" de Renato Zorzenon

saído de coisa nenhuma
um verde em forma de luz
nasce devagar
insinua-se
ganha contornos
este tormento de ficar e querer sair
um grito calado de vento
quando ninguem responde
na violência árida das cores de Frida Kahlo

a saudade da poeira suspensa no sol
uma vontade de estar
com o silêncio das noites sonolentas
um verde que anuncia solstício
de quem não tem medo de novembros
ou a ampulheta de gelo
nesta dor invertida
em forma de pêra

este fermento verde que cresce
que acentua o frio
levedando o espaço
um sentir que distorce o tempo
insinuante
apressado
invasivo
insolente

Eme


Imagem de António Rocha

sábado, 18 de outubro de 2008

Janis Joplin - kosmic Blues

"Time keeps movin' on,
Friends they turn away.
I keep movin' on
But I never found out why
I keep pushing so hard the dream,
I keep tryin' to make it right
Through another lonely day..."

terça-feira, 14 de outubro de 2008


na fogueira das tuas mãos
e no excesso da pluma
é esse o minuto intimo da espera

beijos de pedra
de água
encharcados
suados
um gemido rasgado de seda rendilhada
um rio quente de desejo
no cheiro da maresia

é o que pulsa entre veias e artérias
no namoro da chuva nas estátuas
nas palavras do olhar
e no tempo de coisa nenhuma

é a ponta dos meus cabelos soltos
na tua pele
em mar de espuma
na extensão da música
casulo tecido na dança
interna
de almas
e corpos
nos desenhos ávidos da tua sede

é este céu de lençol
ou este vício da cadência do mar
no toque dedilhado da harpa
com que me matas
e atas
e desatas



Eme



Imagem: Kissers de Rodin


no rastilho de espera
a espiral de palavras
uma ideia de instante que não passa
permanente
doente
com cheiro de pó

um tempo impreciso
nos poemas que emudecem as mãos
um momento irreal
que não aconteceu
e só vive no segredo que eu parti em migalhas
em pontos
vazios

quando apertei as esperas
num calar das duas mãos
primeiro uma
depois outra
neste suor de calma aparente
de dizer:
"quero-te”

sem areia entre os dedos
um soluço sufocado
neste saciar de cansaço
de quem não teme
a marca do fogo
impresso a cinza nas penumbras do corpo

mas só ficou o vento
estranhamente quente
e o azul
demoradamente
azul

Eme
Imagem: Pintor a la Luna. 1917. Marc Chagal.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

antes que a neve derreta
estrangulas a noite com soluços
nos beijos roubados ao fim da tarde
neblina de íntimos
nos véus do desejo

o sabor da maça madura,
o desvario ácido do pecado

este gosto vermelho que consome a voz
o veneno
o vermelho da casca
o veneno
que vem do vermelho
de fora

um lume aceso na cintura
a dança do pecado
quando as mãos são serpentes vivas
com o desejo no meio
qual lua transparente e frágil
esta lebre assaz vermelha
maça mordida
a urgência da carne
e a seguir os sinos

embriagada de vertigem e de gestos
leveza de dança nua em pleno mar de tulipas
como faísca em brasa queimando o gerúndio

queimas-me
até eu sentir que não tenho corpo
nem alma
mas plena de tudo

num transbordar de noite
de febre
de mar
e indecência

Eme

o pó da incerteza
no medo
na primeira pessoa
e no limite
os passos ao contrário das setas
a razão na palma da mão
e a verdade pelo avesso

o impulso de tudo
dos mínimos múltiplos comuns
um espaço impossível
e a saudade que dói nos beijos
nos rascunhos
da boca seca
o reflexo do um rio negro
escuro
o rasgar do grito
e a dor das mãos presas

há uma véspera de ausência
no excesso de lago
e no outro lado do espelho
que vejo
que revejo
que insisto
que atravesso
qual garça de água
adicta de espanto

mas dói tanto esta beleza
esta luz de quietude
estes dias de incenso
iluminados
que me afoguei em prismas de luz
refracçao (im)perfeita de cores
e vácuo
exactas
paralelas ao risco ténue
da verdade que foi uma ilha

fosse eu menos nuvem
e seria Alice
ou Coelho apressado
ou Rainha de Copas
onde acontecia tudo
antes das 11 da manhã

Eme


Imagem:
"Eleven AM"
de Edward Hooper, 1926